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segunda-feira, 29 de setembro de 2014

Contra o Direito de Mentir



O direito de mentir tem motivado acalorados debates sobre mentiras e mentirosos. Ariano Suassuna, autor do Auto da Compadecida, identificou a insólita categoria dos que mentem por mentir, isto é, a impostura pela “arte”. 

Mesmo em tais casos, todavia, a mentira não deixa de atuar sobre o querer, o conhecimento e prováveis atitudes alheias, força que representa a ação de alguém que tenta estender o domínio de sua própria vontade sobre outros indivíduos, negando a vontade deles para melhor afirmar a sua.

    Benjamim Constant (o filósofo francês e não o co-fundador da República brasileira) apregoava que a verdade admitiria tergiversações nas situações em que o dever de dizê-la não tivesse um direito por móvel. Ao conferir imagem à retórica, fornece o exemplo de um assassino que bate à porta de certa pessoa com a intenção de matar o
amigo desta, que está escondido no interior de sua casa. Pergunta, então, ele: a indigitada pessoa deve dizer a verdade quando o assassino perguntar sobre o paradeiro de seu amigo ou deve mentir e dizer que não se encontra no local? Para Constant, se o assassino tem a intenção de infringir a lei, tirando a vida de alguém, não há o dever de dizer a verdade, porquanto o assassino não tem o direito a esse bem jurídico.

    Postou-se também à discussão, de um lado, da moral kantiana a defender, de modo intransigente, o dever de dizer a verdade e, de outro, Shopenhauer, que defendia uma verdade mitigada por concessões de emergência, como o uso da mentira em casos de pergunta intromissiva, indevida, indiscreta, ou quando se refira a algo que não convém dizer.

   Em tempos de "mensalão", "sanguessugas" e "petrolão", entretanto, a utilização da mentira como direito tem chocado e indignado a opinião pública. Como explicar para um cidadão comum que um servidor público, mesmo após ser filmado e fotografado recebendo propina, pode, diante de um Juiz, mentir despudoradamente ao narrar sua “versão” dos fatos? Estar-se-ia diante de uma legítima e inatacável manifestação do direito ao exercício da autodefesa? O direito ao silêncio garante ao acusado o direito de mentir?
    Em fato mais ou menos recente, alguns acusados de envolvimento em um dos mais graves escândalos políticos da história brasileira impetraram, com sucesso, habeas corpus preventivo perante o Supremo Tribunal Federal, a fim de prestarem depoimentos na Comissão Parlamentar Mista de Inquérito (CPMI), que os investigava, sem o compromisso da verdade e a Corte Suprema decidiu que em tais casos o paciente deverá atender à manifestação da CPMI, devendo comparecer no local, dia e hora marcados, mas não lhe será tomado o compromisso de dizer a verdade.[i] Em tal decisão verifica-se a materialização do direito ao silêncio, previsto no inc. LXIII do art. 5.º da Constituição Federal – CF (o preso será informado de seus direitos, dentre os quais o de permanecer calado) ou garantia do nemo tenetur se detegere, onde inclusive testemunhas podem exercer este direito quando as perguntas conduzirem a auto-incriminação.

    No sistema norte-americano, também há preceito semelhante, conhecido como privilege against self-incrimination, pelo qual ninguém é obrigado a depor contra os próprios interesses. Lá, porém, diferentemente do que ocorre no Brasil, o acusado que abre mão do direito ao silêncio cometerá o crime de perjúrio se mentir.

     Malgrado a doutrina e jurisprudência se inclinem-se em direção contrária, sem cogitar de malferimento à Constituição Federal, já é tempo de refletirmos sobre a necessidade penso, já é tempo de refletirmos sobre a necessidade de se introduzir em nosso ordenamento ordenamento jurídico infraconstitucional semelhante sanção para o acusado que, durante o seu interrogatório, relate a ocorrência de fatos inverídicos, assim dificultando a instrução processual e dispersando as atenções para longe dos reais culpados e, por consectário, da verdade real.
 
     Também aqui, em nossa Pindorama, abstraídas convicções ou preferências político-partidárias, a mentira não pode ser encarada como direito sacrossanto, que se serve do cinismo e do subterfúgio como formidáveis instrumentos para o desperdício de tempo e verbas da Nação. É preciso, pois, remover por completo as cracas que encobrem a verdade, como muito bem fez Jacques Chirac quando, pouco depois de sua eleição, expugnou mentira que já perdurava meio século, ao reconhecer solenemente a responsabilidade do Estado francês pela responsabilidade pela deportação de milhares de judeus, pela instituição de um estatuto dos judeus e por várias outras iniciativas anti-semitas não foram tomadas apenas em decorrência da ocupação nazista. "Sim, a estupidez criminosa de nossos ocupantes foi sustentada pelos franceses, pelo Estado francês,"disse Chirac na época. Isso fez com que o Conselho de Estado, a mais alta corte de Justiça da França, em 2009 reconhecesse formalmente que a França permitiu ou facilitou deportações que levaram à perseguição antissemita de 1940 a 1944.[ii]
     
    Portanto, mesmo aqueles que acreditam na frase atribuída a Maquiavel de que “governar é fazer crer”, precisam considerar os bons exemplos de governantes que não permitem que a mentira se sobreponha à verdade.

 Por Airton Portela, Professor, Juiz Federal, ex Analista, ex-Advogado da União e ex-Procurador Federal.


[i] Foram ainda impetrados habeas corpus por pessoas convocadas a depor em diversas Comissões Parlamentares de Inquérito e o Supremo Tribunal Federal, na maioria das vezes, concedeu o direito ao silêncio nos HCs 88703 (CPI dos Bingos - Ministro Cezar Peluso), 88163 (CPI dos Bingos – Ministro Carlos Britto) e 79244 (CPI do Sistema Financeiro)e os acórdãos HC 83703 (CPMI do Banestado – Relator: Ministro Marco Aurélio), HC 73035 (CPI do ECAD – Relator: Ministro Carlos Velloso).


[ii] Entre 1942 e 1944, cerca de 76 mil judeus foram deportados da França para campos de concentração nazistas pelo governo francês instalado pelos  nazistas no centro-sul do país, com capital na cidade de Vichy. O governo de Vichy dividiu entre 1940 e 1944 a administração do território da França com a própria Alemanha, que controlava Paris, o norte e o oeste do país.

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