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segunda-feira, 29 de setembro de 2014

Contra o Direito de Mentir



O direito de mentir tem motivado acalorados debates sobre mentiras e mentirosos. Ariano Suassuna, autor do Auto da Compadecida, identificou a insólita categoria dos que mentem por mentir, isto é, a impostura pela “arte”. 

Mesmo em tais casos, todavia, a mentira não deixa de atuar sobre o querer, o conhecimento e prováveis atitudes alheias, força que representa a ação de alguém que tenta estender o domínio de sua própria vontade sobre outros indivíduos, negando a vontade deles para melhor afirmar a sua.

    Benjamim Constant (o filósofo francês e não o co-fundador da República brasileira) apregoava que a verdade admitiria tergiversações nas situações em que o dever de dizê-la não tivesse um direito por móvel. Ao conferir imagem à retórica, fornece o exemplo de um assassino que bate à porta de certa pessoa com a intenção de matar o
amigo desta, que está escondido no interior de sua casa. Pergunta, então, ele: a indigitada pessoa deve dizer a verdade quando o assassino perguntar sobre o paradeiro de seu amigo ou deve mentir e dizer que não se encontra no local? Para Constant, se o assassino tem a intenção de infringir a lei, tirando a vida de alguém, não há o dever de dizer a verdade, porquanto o assassino não tem o direito a esse bem jurídico.

    Postou-se também à discussão, de um lado, da moral kantiana a defender, de modo intransigente, o dever de dizer a verdade e, de outro, Shopenhauer, que defendia uma verdade mitigada por concessões de emergência, como o uso da mentira em casos de pergunta intromissiva, indevida, indiscreta, ou quando se refira a algo que não convém dizer.

   Em tempos de "mensalão", "sanguessugas" e "petrolão", entretanto, a utilização da mentira como direito tem chocado e indignado a opinião pública. Como explicar para um cidadão comum que um servidor público, mesmo após ser filmado e fotografado recebendo propina, pode, diante de um Juiz, mentir despudoradamente ao narrar sua “versão” dos fatos? Estar-se-ia diante de uma legítima e inatacável manifestação do direito ao exercício da autodefesa? O direito ao silêncio garante ao acusado o direito de mentir?
    Em fato mais ou menos recente, alguns acusados de envolvimento em um dos mais graves escândalos políticos da história brasileira impetraram, com sucesso, habeas corpus preventivo perante o Supremo Tribunal Federal, a fim de prestarem depoimentos na Comissão Parlamentar Mista de Inquérito (CPMI), que os investigava, sem o compromisso da verdade e a Corte Suprema decidiu que em tais casos o paciente deverá atender à manifestação da CPMI, devendo comparecer no local, dia e hora marcados, mas não lhe será tomado o compromisso de dizer a verdade.[i] Em tal decisão verifica-se a materialização do direito ao silêncio, previsto no inc. LXIII do art. 5.º da Constituição Federal – CF (o preso será informado de seus direitos, dentre os quais o de permanecer calado) ou garantia do nemo tenetur se detegere, onde inclusive testemunhas podem exercer este direito quando as perguntas conduzirem a auto-incriminação.

    No sistema norte-americano, também há preceito semelhante, conhecido como privilege against self-incrimination, pelo qual ninguém é obrigado a depor contra os próprios interesses. Lá, porém, diferentemente do que ocorre no Brasil, o acusado que abre mão do direito ao silêncio cometerá o crime de perjúrio se mentir.

     Malgrado a doutrina e jurisprudência se inclinem-se em direção contrária, sem cogitar de malferimento à Constituição Federal, já é tempo de refletirmos sobre a necessidade penso, já é tempo de refletirmos sobre a necessidade de se introduzir em nosso ordenamento ordenamento jurídico infraconstitucional semelhante sanção para o acusado que, durante o seu interrogatório, relate a ocorrência de fatos inverídicos, assim dificultando a instrução processual e dispersando as atenções para longe dos reais culpados e, por consectário, da verdade real.
 
     Também aqui, em nossa Pindorama, abstraídas convicções ou preferências político-partidárias, a mentira não pode ser encarada como direito sacrossanto, que se serve do cinismo e do subterfúgio como formidáveis instrumentos para o desperdício de tempo e verbas da Nação. É preciso, pois, remover por completo as cracas que encobrem a verdade, como muito bem fez Jacques Chirac quando, pouco depois de sua eleição, expugnou mentira que já perdurava meio século, ao reconhecer solenemente a responsabilidade do Estado francês pela responsabilidade pela deportação de milhares de judeus, pela instituição de um estatuto dos judeus e por várias outras iniciativas anti-semitas não foram tomadas apenas em decorrência da ocupação nazista. "Sim, a estupidez criminosa de nossos ocupantes foi sustentada pelos franceses, pelo Estado francês,"disse Chirac na época. Isso fez com que o Conselho de Estado, a mais alta corte de Justiça da França, em 2009 reconhecesse formalmente que a França permitiu ou facilitou deportações que levaram à perseguição antissemita de 1940 a 1944.[ii]
     
    Portanto, mesmo aqueles que acreditam na frase atribuída a Maquiavel de que “governar é fazer crer”, precisam considerar os bons exemplos de governantes que não permitem que a mentira se sobreponha à verdade.

 Por Airton Portela, Professor, Juiz Federal, ex Analista, ex-Advogado da União e ex-Procurador Federal.


[i] Foram ainda impetrados habeas corpus por pessoas convocadas a depor em diversas Comissões Parlamentares de Inquérito e o Supremo Tribunal Federal, na maioria das vezes, concedeu o direito ao silêncio nos HCs 88703 (CPI dos Bingos - Ministro Cezar Peluso), 88163 (CPI dos Bingos – Ministro Carlos Britto) e 79244 (CPI do Sistema Financeiro)e os acórdãos HC 83703 (CPMI do Banestado – Relator: Ministro Marco Aurélio), HC 73035 (CPI do ECAD – Relator: Ministro Carlos Velloso).


[ii] Entre 1942 e 1944, cerca de 76 mil judeus foram deportados da França para campos de concentração nazistas pelo governo francês instalado pelos  nazistas no centro-sul do país, com capital na cidade de Vichy. O governo de Vichy dividiu entre 1940 e 1944 a administração do território da França com a própria Alemanha, que controlava Paris, o norte e o oeste do país.

domingo, 28 de setembro de 2014

A redução da maioridade penal


 A redução da maioridade penal é inconstitucional? Uma emenda à Constituição nesse sentido violaria cláusula pétrea?


   Há em tramitação no Congresso Nacional vários projetos de emendas à Constituição que objetivam reduzir a maioridade penal de dezoito para dezesseis anos. Todavia, vozes altissonantes de constitucionalistas como a de José Afonso da Silva[1] afirmam a sua inconstitucionalidade por conceberem a inimputabilidade do menor de dezoito anos como garantia fundamental e que, portanto, está protegida por cláusula de imutabilidade, sedo assim intangível à ação do legislador derivado[2].

   Na mesma linha, até mesmo as comissões de Constituição e Justiça de nossas casas legislativas, nos últimos tempos, têm desvirtuando o seu sentido e propósito, ao expandirem demasiadamente o alcance do conceito da garantia de idade mínima para aplicação de pena, assim obstaculizando, indevidamente, projetos de alteração constitucional que perfilham tal ideia.

   Para nós, no entanto, a redução da maioridade penal para dezesseis anos (por exemplo) de forma alguma violará direito fundamental, porquanto somente a falta de razoabilidade ou de proporcionalidade afetaria à própria condição de dignidade humana e os direitos que a tutelam. Nos mesmos termos, mas com outras palavras: o que não há que se admitir é a supressão completa de idade mínima para apenamento ou que esta seja fixada de forma desarrazoada, sem nenhuma base científica acerca do grau de discernimento de um indivíduo. 

   Aliás, sem sequer se cogitar de violação da dignidade da pessoa humana, países com muito mais elevado desenvolvimento humano que o Brasil tem a maioridade penal fixada abaixo de dezoito anos. Confira-se, pois: Escócia (nove anos), Holanda (doze anos), Nova Zelândia, Espanha e França (treze anos), Áustria, Alemanha e Itália (quatorze anos), Dinamarca, Noruega, Suécia e Finlândia (quinze anos).[3]

   Mesmo que se admita que a maioridade penal, fixada em dezoito anos, é garantia fundamental, não se pode perder de vista que as cláusulas pétreas, ao estabelecerem limites ao poder de reforma, têm por objetivo a preservação da estrutura essencial de princípios e valores que elegem como indispensáveis e não impossibilitar um desenvolvimento constitucional tão legítimo quanto acompanhe a evolução da sociedade, do Estado e de suas respectivas instituições. 
       
   Nesse sentido, a própria jurisprudência do STF inclina-se para aceitar a reforma que vise tão somente o aperfeiçoamento dos direitos protegidos pelas cláusulas de imutabilidade (caso da forma federativa[4] de Estado e separação de Poderes).[5]Nessa linha, o Pretório Excelso, por conduto do voto do Ministro Gilmar Mendes,[6] advertiu que a demasiada amplitude conferida às cláusulas pétreas pode conduzir a um engessamento da ordem constitucional, obstando à introdução de mudança de maior significado. Desse modo, fixou-se que as cláusulas pétreas, e não os direitos por elas protegidos, devem ser interpretadas de forma mais restritiva em um esforço hermenêutico para revelar que princípios estão cobertos pela garantia de imutabilidade.

Por Airton Portela, Professor, Juiz Federal, ex Analista, ex-Advogado da União e ex-Procurador Federal.

    

[1]. STF – SILVA, José Afonso da. Comentário contextual à Constituição. 6ª ed. São Paulo: Malheiros, 2009.

[2]. Como visto em outra parte desta obra: o art. 60, § 4º, dispõe que “não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir: a) – a forma federativa de Estado; b) – o voto direto, secreto, universal e periódico; c) – a separação dos Poderes; d) – os direitos e garantias individuais.

[3] A maioridade penal no Brasil e em outros países consultoria legislativa da Câmara dos Deputados, de Autoria de José de Ribamar B. Soares, fevereiro de 2006

[4].      STF (ADI 2.395, Rel. Min. Gilmar Mendes, julgamento em 9-5-2007, Plenário, DJE de 23-5-2008). No mesmo sentido: ADI 2.381-MC, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, julgamento em 20-6-2001, Plenário, DJ de 14-12-2001.

[5].      STF (ADI 3.367, Rel. Min. Cezar Peluso, julgamento em 13-4-2005, Plenário, DJ de 22-9-2006).


[6].      STF (ADPF 33-MC, voto do Rel. Min. Gilmar Mendes, julgamento em 29-10-2003, Plenário, DJ de 6-8-2004).


sábado, 27 de setembro de 2014

A “abstrativização” do controle de constitucionalidade difuso chegou para valer no Supremo Tribunal Federal?



 A “abstrativização” do controle difuso de constitucionalidade chegou para valer no Supremo Tribunal Federal?   

A declaração de inconstitucionalidade de lei ou ato normativo pelo Supremo Tribunal Federal, por esta via, é suficiente para a suspensão da eficácia geral das referidas normas mesmo sem atuação do Senado Federal?



        Pela via difusa ou incidental, a norma somente poderá ser considerada invalidada abstratamente, ou seja, definitivamente e em relação a tudo e a todos, caso cumpridas as seguintes etapas:

        a) Que a questão de inconstitucionalidade chegue ao STF pelas vias processuais convencionais, em regra por meio de Recurso Extraordinário, e a Corte Suprema reconheça sua inconstitucionalidade;

        b) Que o Senado Federal suspenda no todo ou em parte a sua execução (art. 52, X, CF/88). Nesse caso, o Senado Federal agirá orientado por conveniência política, não estando obrigado a suspender a norma mesmo que já pronunciada sua inconstitucionalidade em última instância, podendo mesmo negar-se a emprestar efeitos erga omnes a lei declarada inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal.

          Todavia, ao lançarmos luzes sobre a jurisprudência mais recente do Supremo Tribunal Federal chegaremos à inevitável conclusão de que, em alguns casos, a “abstrativização” ou a produção de efeitos gerais pela via difusa tem sido alcançada sem qualquer participação do Senado Federal e, desse modo, ganha força a idéia de que os sistemas de controle abstrato e difuso, quanto aos efeitos, caminham para fundir-se. 

           Assim, tem se dado quando a Suprema Corte realiza a modulação de efeitos quando declara a inconstitucionalidade por controle difuso, quando edita súmula vinculante, quando reconhece repercussão geral a recurso extraordinário, quando julga mandado de injunção conferindo-lhe função concretizante geral e, mais recentemente, ao sinalizar pela assimilação da cultura de valorização dos precedentes inspirado na chamada teoria do stare decisis do direito estadunidense.

         O controle difuso, como se sabe, como regra, além de efeitos inter partes e ex tunc (retroativos), reconhece que a lei é nula desde a sua origem (princípio da nulidade).  Todavia, o Supremo Tribunal Federal tem realizado a modulação dos efeitos da decisão em controle de constitucionalidade difuso.[2] Para tanto, a Suprema Corte tem invocado razões de segurança jurídica e relevante interesse social para flexibilizar a decisão e assim determinar que a declaração de inconstitucionalidade produza efeitos temporais ex nunc (a partir do trânsito em julgado); ou efeito pro futuro, quando declara a inconstitucionalidade mas preserva a eficácia da norma por mais algum tempo (a partir de data fixada pelo STF e não no momento da publicação). Além disso, tem declarado a inconstitucionalidade sem pronúncia de nulidade, desta feita permitindo que seja aplicada até que o legislador, em prazo razoável, adote providências para corrigir a inconstitucionalidade verificada. 

       O STF, ao modular os efeitos no controle difuso, tem até mesmo fixado condição para que alguém se sirva da declaração de inconstitucionalidade. Isso se deu, por exemplo, quando declarou que a Fazenda Pública está impedida, fora dos prazos de decadência e prescrição previstos no CTN (cinco anos), de exigir contribuições para a seguridade social. Todavia, considerou legítimos os recolhimentos efetuados nos prazos previstos nos arts. 45 e 46 da Lei 8.212/91 (dez anos) se não impugnados antes da data de conclusão do julgamento que declarou inconstitucional este prazo. Nesse caso, os valores já recolhidos, com mais de cinco e menos de dez anos, nesta condição somente devem ser devolvidos ao contribuinte se ajuizada ação de repetição de indébito até a data da conclusão do julgamento que declarou a inconstitucionalidade dos referidos dispositivos da lei n. 8.212/91.[3]

         Também demonstram esse caminhar para a abstrativização do controle difuso, a própria súmula vinculante que, como cediço, apanha um feixe de decisões reiteradas sobre matéria constitucional, debatida e julgada pela via difusa, e edita enunciado de súmula que terá efeitos sobre os demais órgãos do Poder Judiciário e em relação à Administração em todas as esferas (art. 103-A, da CF, e art. 2°, da lei 11.417/2006).

        Da mesma forma, o instituto da repercussão geral que fixa como requisito de admissibilidade para o Recurso Extraordinário que a causa transcenda os interesses meramente individuais, ou seja, que se demonstre a existência de questões relevantes do ponto de vista econômico, político, social ou jurídico, que ultrapassem os interesses jurídicos da causa. Ora, se o instrumento processual que por excelência serve o controle constitucional difuso é o Recurso Extraordinário, e este somente pode ser julgado pelo STF se a causa tiver repercussão muito mais que tão somente em relação as partes, não há como se negar que o precedente que daí decorre deve também ter alcance geral, independentemente da atuação de outro órgão (no caso o Senado Federal suspendendo a eficácia da norma). Nesses termos, não por outra razão, prevê o art. 543, § 3º, do CPC, que os Tribunais, Turmas de Uniformização e Turmas Recursais deverão adotar a posição do STF sobre o tema. Ademais, na repercussão geral, tal qual ocorre no controle concentrado, a causa de pedir torna-se aberta, e assim o STF não se restringirá aos argumentos lançados na peça recursal paradigma. 

      Na mesma linha, a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, ao conferir função concretizante geral ao Mandado de Injunção, também evoluiu para conferir normatividade supletiva às suas decies, sem que com isso violação ao princípio da harmonização e separação dos poderes, por tratar-se de uma regulação provisória e decorrente de missão determinada pela própria Constituição.349

      Assim é que no MI 712, sob relatoria do Ministro Eros Grau, entendeu-se caber ao Judiciário tornar viáveis direitos previstos na Constituição, entre os quais o direito de greve dos servidores blicos, passando a proferir decisões dotadas de eficácia quando a mora legislativa emanar daqueles a quem a Constituição atribui foro e legitimidade passiva junto ao STF. Todavia, é preciso detida atenção no fato de que, embora o STF tenha estabelecido concrão ao direito de greve dos servidores de maneira geral, o fez nos moldes da sentença aditiva do direito italiano, tendo, pois, apenas se servido de um regime já adotado pelo legislador (Lei 7.783/89, que regula o direito de greve dos trabalhadores da iniciativa privada), tomando-o somente enquanto a omissão não for corrigida por lei específica para os servidores blicos.

       No julgamento da Rcl 4335/AC o Ministro do Supremo Tribunal Federal Gilmar Mendes que, registre-se, capitaneia a ideia de abstrativização do sistema difuso, sustentou a ideia de que o papel do Senado Federal, em nova interpretação à regra contida no art. 52, X, da CF, seria apenas de dar publicidade à suspensão da execução da lei declarada inconstitucional pelo STF.[4]

         Embora a tese lançada pelo eminente constitucionalista pudesse merecer acolhida sob o ponto de vista ontológico – porquanto tanto a declaração de inconstitucionalidade pela via direta quanto pela via difusa atuam da mesma forma, ou seja, constatam a incompatibilidade vertical da norma com a Constituição Federal ou, dito de outro modo, reconhecem a imprestabilidade de lei ou ato normativo para integrar o ordenamento jurídico -, ante a impossibilidade de que o Supremo Tribunal Federal exerça a função de legislador positivo, não se pode admitir qualquer interpretação que negue a literalidade do disposto no art. 52, X, da CF, que somente ao Senado Federal confere atribuição para suspender a eficácia de norma tida por inconstitucional no controle difuso realizado pelo STF.

         No entanto, na conclusão do julgamento da Rcl 4335/AC, de 20.3.2014, surgiu uma interessante e engenhosa construção formulada a partir do voto-vista do Ministro Teori Zavascki, que por certo fará evoluir a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal para reconhecer efeitos gerais às decisões proferidas pelo Plenário do STF em controle difuso sem, contudo, promover a obliteração da referida regra contida no art. 52, X, da CF.

         Com efeito, defendeu-se que resolução do Senado Federal, reclamada pelo art. 52, X, da CF, não seria a única forma de provocar efeitos ultra partes (efeito expansivo) e que essa objetivação de julgamentos já tinha por precursores (conforme aludimos) os institutos da repercussão geral e das súmulas vinculantes, ambos instituídos pela EC n. 45/2004 e que, para além disso, o Supremo Tribunal Federal há certo tempo vem realizando a modulação dos efeitos de decisões em casos concretos, e isso colabora para comprovar a existência de efeitos transcendentes em decisões em controle de constitucionalidade incidental.

         Desse modo, o Ministro Teori Zavascki demonstrou a convivência de dois meios aptos a conferir eficácia geral às decisões do Supremo Tribunal Federal em controle incidental: a) o primeiro, pela atuação do Senado Federal promovendo a suspensão da eficácia da norma, conforme previsão do art. 52, X, da CF; e b) o segundo, pela força expansiva dos precedentes formados a partir de decisões em controle de constitucionalidade, tomadas quando da apreciação de casos concretos. Assim, sem embargo de que integre o sistema jurídico romano-germânico (civil law), o sistema de controle de constitucionalidade brasileiro estaria a perfilhar parcialmente a chamada teoria do stare decisis (que como se sabe advém da expressão latina stare decisis et non quieta movere (mantenha-se a decisão e não se modifique o que foi decidido"), modelo que alcança sua maior expressão nos Estados Unidos, País que adota o sistema anglo saxão da common law.[5]

       Portanto, para além de sua força persuasiva convencional, o sistema de controle de constitucionalidade brasileiro, sem malferir o princípio da separação dos poderes, teria conferido um caráter expansivo às decisões em declarações incidentais de inconstitucionalidade e, assim sendo, o direito pátrio aderiu à cultura de valorização dos precedentes emanados das cortes superiores, que no caso de decisões proferidas pelo Supremo Tribunal Federal, mesmo que em exercício de controle incidental de constitucionalidade, serão obrigatoriamente observadas pelos órgãos judiciários inferiores. Com isso, segundo argumentou o Ministro Roberto Barroso, em caráter complementar, a expansão do papel dos precedentes atenderá a três finalidades constitucionais: segurança jurídica, isonomia e eficiência, assim tornando a prestação jurisdicional mais previsível, menos instável e mais fácil, posto que as decisões serão justificadas à luz da jurisprudência.

          De resto, na conclusão do julgamento da Rcl 4335/AC, não foi acolhida a tese de mutação constitucional e assim o art. 52, X, da CF, conservou seu sentido original (compete privativamente ao Senado Federal: suspender a execução, no todo ou em parte, de lei declarada inconstitucional por decisão definitiva do Supremo Tribunal Federal). Na mesma assentada também excluiu-se qualquer interpretação ab-rogante a tal dispositivo, mantendo sua compleição tanto textual quanto normativa, assim como também não se proveu a idéia de que a suspensão de execução da lei pelo Senado apenas conferiria publicidade à decisão definitiva proferida pelo STF em controle incidental de constitucionalidade (caso em que caberia a este Órgão apenas e tão somente realizar comunicação àquela Casa Legislativa para que publicasse a decisão em veículo de imprensa oficial).

           Por último, há que se assinalar que, se de um lado, a partir das idéias lançadas no julgamento da Rcl 4335/AC, inevitavelmente,  se passe a experimentar uma mudança radical das concepções acerca do controle difuso de constitucionalidade no âmbito do Supremo Tribunal Federal, de outro, tal “quebra de paradigma” representará um extraordinário avanço do sistema de controle de constitucionalidade brasileiro, pois com a atribuição de efeitos gerais ao controle difuso, o sistema normativo nacional tende a tornar-se um dos mais fiscalizados do mundo e isso, inegavelmente, é salutar.

            Contudo, é preciso antever-se (como, aliás, o fez o Ministro Teori Zavascki em seu voto) que tal mudança poderá trazer conseqüências desastrosas, porquanto, inevitavelmente, a cada decisão proferida em controle difuso surgirão um sem numero de reclamações e este fato, por si mesmo, já bastaria para inviabilizar o funcionamento do Supremo Tribunal Federal.

           Diante disso, impõe-se a adoção da solução ventilada no próprio julgamento da Rcl 4334, qual seja, a de que, mesmo em sede de controle de constitucionalidade pela via difusa, somente se permita o manuseio de reclamação pelos legitimados relacionados para ADI no art. 103 da CF ou por quem haja participado da relação processual.

       Também em razão do grande impacto que esse novo entendimento passa a produzir, resta imperiosa a necessidade de que as teses jurídicas, lançadas quando do julgamento de inconstitucionalidades, a partir de casos concretos, sejam demonstradas de forma clara, objetiva, concisa, nítida (ou holding, conforme defendeu Roberto Barroso em seu voto), pois se se passa a adotar doravante, um sistema de precedentes vinculantes é preciso que se separe joio do trigo porquanto em tal modelo nem todo fundamento lançado poderá ser considerado ratio decidendi, pois tudo o quanto for dito apenas como recurso retórico ou simples reforço argumentativo, e que por isso não detenha aptidão para tornar-se tese jurídica vinculante para casos futuros, constituirá apenas obiter dictum (gratis dictum ou dicta), e sendo imprescindível, em nada alterará o eixo principal de formação do julgado. Nesse caso, anote-se, para além do simples descortino do paradigma jurídico fixado, a dispensa de argumentos supérfluos também fará com que o STF diminua a duração dos julgamentos e o tamanho dos votos, podendo assim produzir mais e melhor. De mais a mais, também merece ser prestigiada a proposta do Ministro Roberto Barroso (manifestada no mesmo julgamento comentado nesta assentada) no sentido de que a ementa do julgado, para que seja clara e segura como um precedente vinculante deve ser, necessita que sua redação final, além de sintetizar as teses majoritárias, seja também aprovada pela maioria absoluta dos integrantes do Supremo Tribunal Federal.

            Faça-se presente, contudo, que o referido debate ainda não findou. É que o Ministro Ricardo Lewandowski – embora tenha acenado por acompanhar o voto do Ministro Zawascki, como assim o fizeram os Ministros Roberto Barroso, Rosa Weber, Celso de Mello e o próprio relator Ministro Gilmar Mendes –, como presidente em Exercício, proclamou o resultado sem reconhecer peremptoriamente a possibilidade da produção de efeitos expansivos, nos termos do voto do voto do Ministro Teori Zawascki, ponderando que não havia possibilidade se produzir maioria absoluta naquela sessão e, ademais, o STF necessitaria aprimorar a solução preconizada pelo Ministro Teori Zawascki, pois se fazia necessário produzir uma “jurisprudência defensiva” para que o Supremo Tribunal Federal não restasse inviabilizado pela grande quantidade de reclamações que surgiriam a partir do reconhecimento de efeitos gerais as decisões proferidas em controle difuso.[6]  
         
           Contudo, após o referido julgamento da Rcl 4335/AC, o STF já deu claras indicações de que essa nova realidade tende a consolidar-se. É que que, em seu voto, no RMS 29087, em 16/09/2014, o Ministro Celso de Mello afirmou que os fundamentos e salvaguardas relacionadas à demarcação de terras indígenas fixados no julgamento da PET 3388 (Raposa Serra do Sol), que teve a questão constitucional enfrentada pela via difusa, tem orientações direcionadas “a todos os processos sobre o mesmo tema” e não apenas àquele caso.

Por Airton Portela, Professor, Juiz Federal, ex Analista, ex-Advogado da União e ex-Procurador Federal.


[1].   STF (ADI 15, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, Plenário, DJ de 31-8-2007).

 [2] Não obstante a modulação dos efeitos seja legalmente admissível somente no controle concentrado, a saber; na ação direta de inconstitucionalidade, na ação declaratória de constitucionalidade, na ação de inconstitucionalidade por omissão e na argüição de descumprimento de preceito fundamental, respectivamente cuidados pelas leis n. 9.868/99, em seu artigo 27, 12-A, §2º; e 9.922/99, em seu artigo 11).


[3] RE 556.664, Relator Ministro Gilmar Mendes, Tribunal Pleno, julgamento em 12.6.2008, DJe de 14.11.2008.


[4].      STF (Rcl 4335/AC, rel. Min. Gilmar Mendes, julgamento em 19.4.2007).


[5] No direito estadunidense a decisão proferida pela Suprema Corte é obrigatória para todos os juízes e tribunais, e, portanto, a declaração de inconstitucionalidade em um caso concreto traz como consequência a não aplicação daquela lei a qualquer outra situação, porque todos os tribunais estarão subordinados à tese jurídica estabelecida. De modo que a decisão, não obstante referir-se a um litígio específico, produz efeitos gerais, em face de todos (erga omnes). (BARROSO, 2012, p. 71).


[6] Eros Grau defendeu a mutação constitucional e acabou isolado, pois o próprio relator, Min. Gilmar Mendes, conforme é possível extrair-se dos debates durante a sessão de julgamento, anuiu a tese desenvolvida pelo Ministro Zawalski. Os Ministros Sepúlveda Pertence e Marco Aurélio votaram pela preservação da aplicação literal do art. 52, X, da CF, a Ministra Carmem Lúcia não participou da sessão e os Ministros Toffolli e Luiz Fux estavam impedidos de votar pois seus antecessores (Sepúlveda Pertence e Eros Grau) já haviam votado.