A
“abstrativização” do controle difuso de constitucionalidade chegou para valer
no Supremo Tribunal Federal?
A declaração de inconstitucionalidade de lei ou
ato normativo pelo Supremo Tribunal Federal, por esta via, é suficiente para a
suspensão da eficácia geral das referidas normas mesmo sem atuação do Senado
Federal?
Pela via difusa ou incidental, a
norma somente poderá ser considerada invalidada abstratamente, ou seja, definitivamente
e em relação a tudo e a todos, caso cumpridas as seguintes etapas:
a) Que a questão de
inconstitucionalidade chegue ao STF pelas vias processuais convencionais, em
regra por meio de Recurso Extraordinário, e a Corte Suprema reconheça sua inconstitucionalidade;
b) Que o Senado Federal
suspenda no todo ou em parte a sua execução (art. 52, X, CF/88). Nesse caso, o
Senado Federal agirá orientado por conveniência política, não estando obrigado
a suspender a norma mesmo que já pronunciada sua inconstitucionalidade em
última instância, podendo mesmo negar-se a emprestar efeitos erga omnes a
lei declarada inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal.
Todavia,
ao lançarmos luzes sobre a jurisprudência mais recente do Supremo Tribunal
Federal chegaremos à inevitável conclusão de que, em alguns casos, a “abstrativização”
ou a produção de efeitos gerais pela via difusa tem sido alcançada sem qualquer
participação do Senado Federal e, desse modo, ganha força a idéia de que os sistemas
de controle abstrato e difuso, quanto aos efeitos, caminham para fundir-se.
Assim,
tem se dado quando a Suprema Corte realiza a modulação de efeitos quando
declara a inconstitucionalidade por controle difuso, quando edita súmula
vinculante, quando reconhece repercussão geral a recurso extraordinário,
quando julga mandado de injunção conferindo-lhe função concretizante
geral e, mais recentemente, ao sinalizar pela assimilação da cultura de
valorização dos precedentes inspirado
na chamada teoria do stare decisis do direito estadunidense.
O controle difuso, como se
sabe, como regra, além de efeitos inter partes e ex tunc (retroativos),
reconhece que a lei é nula desde a sua origem (princípio da nulidade). Todavia, o Supremo Tribunal Federal tem
realizado a modulação dos efeitos da decisão em controle de constitucionalidade
difuso. Para tanto, a Suprema Corte tem invocado razões de
segurança jurídica e relevante interesse social para flexibilizar a decisão
e assim determinar que a declaração de inconstitucionalidade produza efeitos
temporais ex nunc (a partir do trânsito em julgado); ou efeito pro futuro, quando declara a
inconstitucionalidade mas preserva a eficácia da norma por mais algum
tempo (a partir de data fixada pelo STF
e não no momento da publicação). Além disso, tem declarado a
inconstitucionalidade sem pronúncia de nulidade, desta feita permitindo que seja
aplicada até que o legislador, em prazo razoável, adote providências para
corrigir a inconstitucionalidade verificada.
O STF, ao modular os efeitos
no controle difuso, tem até mesmo fixado condição
para que alguém se sirva da declaração de inconstitucionalidade. Isso se
deu, por exemplo, quando declarou que a Fazenda Pública está impedida, fora dos
prazos de decadência e prescrição previstos no CTN (cinco anos), de exigir
contribuições para a seguridade social. Todavia, considerou legítimos os
recolhimentos efetuados nos prazos previstos nos arts. 45 e 46 da Lei 8.212/91
(dez anos) se não impugnados antes da data de conclusão do julgamento que
declarou inconstitucional este prazo. Nesse caso, os valores já recolhidos, com
mais de cinco e menos de dez anos, nesta condição somente devem ser devolvidos
ao contribuinte se ajuizada ação de repetição de indébito até a data da
conclusão do julgamento que declarou a inconstitucionalidade dos referidos dispositivos
da lei n. 8.212/91.
Também demonstram esse
caminhar para a abstrativização do controle difuso, a própria súmula vinculante que, como cediço, apanha
um feixe de decisões reiteradas sobre matéria constitucional, debatida e
julgada pela via difusa, e edita enunciado de súmula que terá efeitos sobre os
demais órgãos do Poder Judiciário e em relação à Administração em todas as
esferas (art. 103-A, da CF, e art. 2°, da lei 11.417/2006).
Da mesma forma, o instituto da
repercussão geral que fixa como
requisito de admissibilidade para o Recurso
Extraordinário que a causa transcenda os interesses meramente individuais,
ou seja, que se demonstre a existência de questões relevantes do ponto de vista
econômico, político, social ou jurídico, que ultrapassem os interesses
jurídicos da causa. Ora, se o instrumento
processual que por excelência serve o controle constitucional difuso é o
Recurso Extraordinário, e este somente pode ser julgado pelo STF se a causa
tiver repercussão muito mais que tão somente em relação as partes, não há como
se negar que o precedente que daí decorre deve também ter alcance geral,
independentemente da atuação de outro órgão (no caso o Senado Federal
suspendendo a eficácia da norma). Nesses termos, não por outra razão, prevê o
art. 543, § 3º, do CPC, que os Tribunais, Turmas de Uniformização e Turmas
Recursais deverão adotar a posição do STF sobre o tema. Ademais, na repercussão
geral, tal qual ocorre no controle concentrado, a causa de pedir torna-se aberta,
e assim o STF não se restringirá aos argumentos lançados na peça recursal
paradigma.
Na mesma linha, a jurisprudência do
Supremo Tribunal Federal, ao conferir função
concretizante geral ao Mandado de Injunção, também evoluiu para conferir
normatividade supletiva às suas decisões, sem que com isso violação ao princípio da harmonização e separação dos poderes, por tratar-se de
uma regulação provisória e decorrente de missão determinada pela própria Constituição.349
Assim é que no MI 712, sob relatoria do
Ministro Eros Grau, entendeu-se caber ao Judiciário tornar viáveis direitos previstos na Constituição, entre os quais o direito de
greve dos servidores públicos, passando a proferir decisões
dotadas de eficácia quando a mora legislativa emanar daqueles a quem a Constituição atribui foro e legitimidade
passiva junto ao STF. Todavia, é preciso detida atenção no fato de que, embora o STF tenha estabelecido concreção ao direito de greve dos servidores de maneira geral, o fez nos moldes da sentença aditiva do direito italiano, tendo, pois, apenas se servido de um regime já adotado pelo legislador (Lei nº 7.783/89,
que regula o direito de greve
dos
trabalhadores da iniciativa privada), tomando-o somente enquanto a omissão não for corrigida por lei específica para os servidores públicos.
No julgamento da Rcl 4335/AC o Ministro
do Supremo Tribunal Federal Gilmar Mendes que, registre-se, capitaneia a ideia
de abstrativização do sistema difuso, sustentou a ideia de que o papel do
Senado Federal, em nova interpretação à regra contida no art. 52, X, da CF,
seria apenas de dar publicidade à suspensão da execução da lei declarada
inconstitucional pelo STF.[4]
Embora a tese lançada pelo eminente
constitucionalista pudesse merecer acolhida sob o ponto de vista ontológico – porquanto
tanto a declaração de inconstitucionalidade pela via direta quanto pela via
difusa atuam da mesma forma, ou seja, constatam a incompatibilidade vertical da
norma com a Constituição Federal ou, dito de outro modo, reconhecem a imprestabilidade
de lei ou ato normativo para integrar o ordenamento jurídico -, ante a
impossibilidade de que o Supremo Tribunal Federal exerça a função de legislador
positivo, não se pode admitir qualquer interpretação que negue a literalidade
do disposto no art. 52, X, da CF, que somente ao Senado Federal confere
atribuição para suspender a eficácia de norma tida por inconstitucional no
controle difuso realizado pelo STF.
No
entanto, na conclusão do julgamento da Rcl 4335/AC, de 20.3.2014, surgiu uma
interessante e engenhosa construção formulada a partir do voto-vista do Ministro
Teori Zavascki, que por certo fará evoluir a jurisprudência do Supremo Tribunal
Federal para reconhecer efeitos gerais às decisões proferidas pelo Plenário do
STF em controle difuso sem, contudo, promover a obliteração da referida regra
contida no art. 52, X, da CF.
Com
efeito, defendeu-se que resolução do Senado Federal, reclamada pelo art. 52, X,
da CF, não seria a única forma de provocar efeitos ultra partes (efeito expansivo) e que essa objetivação de
julgamentos já tinha por precursores (conforme aludimos) os institutos da
repercussão geral e das súmulas vinculantes, ambos instituídos pela EC n.
45/2004 e que, para além disso, o Supremo Tribunal Federal há certo tempo vem
realizando a modulação dos efeitos de decisões em casos concretos, e isso
colabora para comprovar a existência de efeitos transcendentes em decisões em
controle de constitucionalidade incidental.
Desse
modo, o Ministro Teori Zavascki demonstrou a convivência de dois meios aptos a
conferir eficácia geral às decisões do Supremo Tribunal Federal em controle
incidental: a) o primeiro, pela atuação
do Senado Federal promovendo a suspensão da eficácia da norma, conforme
previsão do art. 52, X, da CF; e b) o segundo, pela força expansiva dos precedentes formados a partir de decisões em
controle de constitucionalidade, tomadas quando da apreciação de casos
concretos. Assim, sem embargo de que integre o sistema jurídico romano-germânico
(civil law), o sistema de controle de
constitucionalidade brasileiro estaria a perfilhar parcialmente a chamada
teoria do stare decisis (que como se sabe advém da expressão latina stare decisis et non
quieta movere (mantenha-se a decisão
e não se modifique o que foi decidido"), modelo que alcança sua maior
expressão nos Estados Unidos, País que adota o sistema anglo saxão da common law.
Portanto,
para além de sua força persuasiva convencional, o sistema de controle de
constitucionalidade brasileiro, sem malferir o princípio da separação dos
poderes, teria conferido um caráter expansivo às decisões em declarações
incidentais de inconstitucionalidade e, assim sendo, o direito pátrio aderiu à
cultura de valorização dos precedentes emanados das cortes superiores, que no
caso de decisões proferidas pelo Supremo Tribunal Federal, mesmo que em
exercício de controle incidental de constitucionalidade, serão obrigatoriamente
observadas pelos órgãos judiciários inferiores. Com isso, segundo argumentou o
Ministro Roberto Barroso, em caráter complementar, a expansão do papel dos precedentes
atenderá a três finalidades constitucionais: segurança jurídica, isonomia
e eficiência, assim tornando a prestação
jurisdicional mais previsível, menos instável e mais fácil, posto que as decisões
serão justificadas à luz da jurisprudência.
De
resto, na conclusão do julgamento da Rcl 4335/AC, não foi acolhida a tese de mutação constitucional e assim o art.
52, X, da CF, conservou seu sentido original (compete privativamente ao Senado
Federal: suspender a execução, no todo ou em parte, de lei declarada
inconstitucional por decisão definitiva do Supremo Tribunal Federal). Na mesma
assentada também excluiu-se qualquer interpretação ab-rogante a tal
dispositivo, mantendo sua compleição tanto textual quanto normativa, assim como
também não se proveu a idéia de que a suspensão de execução da lei pelo Senado
apenas conferiria publicidade à decisão definitiva proferida pelo STF em
controle incidental de constitucionalidade (caso em que caberia a este Órgão
apenas e tão somente realizar comunicação àquela Casa Legislativa para que
publicasse a decisão em veículo de imprensa oficial).
Por
último, há que se assinalar que, se de um lado, a partir das idéias lançadas no
julgamento da Rcl 4335/AC, inevitavelmente, se passe a experimentar uma mudança radical
das concepções acerca do controle difuso de constitucionalidade no âmbito do
Supremo Tribunal Federal, de outro, tal “quebra de paradigma” representará um
extraordinário avanço do sistema de controle de constitucionalidade brasileiro,
pois com a atribuição de efeitos gerais ao controle difuso, o sistema normativo
nacional tende a tornar-se um dos mais fiscalizados do mundo e isso,
inegavelmente, é salutar.
Contudo,
é preciso antever-se (como, aliás, o fez o Ministro Teori Zavascki em seu voto)
que tal mudança poderá trazer conseqüências desastrosas, porquanto,
inevitavelmente, a cada decisão proferida em controle difuso surgirão um sem
numero de reclamações e este fato, por si mesmo, já bastaria para inviabilizar
o funcionamento do Supremo Tribunal Federal.
Diante
disso, impõe-se a adoção da solução ventilada no próprio julgamento da Rcl
4334, qual seja, a de que, mesmo em sede de controle de constitucionalidade
pela via difusa, somente se permita o manuseio de reclamação pelos legitimados
relacionados para ADI no art. 103 da CF ou por quem haja participado da relação
processual.
Também
em razão do grande impacto que esse novo entendimento passa a produzir, resta
imperiosa a necessidade de que as teses jurídicas, lançadas quando do
julgamento de inconstitucionalidades, a partir de casos concretos, sejam
demonstradas de forma clara, objetiva, concisa, nítida (ou holding, conforme defendeu Roberto Barroso em seu voto), pois se se
passa a adotar doravante, um sistema de
precedentes vinculantes é preciso que se separe joio do trigo porquanto em
tal modelo nem todo fundamento lançado poderá ser considerado ratio decidendi, pois tudo o quanto for
dito apenas como recurso retórico ou simples reforço argumentativo, e que por
isso não detenha aptidão para tornar-se tese jurídica vinculante para casos
futuros, constituirá apenas obiter dictum
(gratis dictum ou dicta), e sendo imprescindível, em nada
alterará o eixo principal de formação do julgado. Nesse caso, anote-se, para
além do simples descortino do paradigma jurídico fixado, a dispensa de argumentos
supérfluos também fará com que o STF diminua a duração dos julgamentos e o
tamanho dos votos, podendo assim produzir mais e melhor. De mais a mais, também
merece ser prestigiada a proposta do Ministro Roberto Barroso (manifestada no mesmo
julgamento comentado nesta assentada) no sentido de que a ementa do julgado,
para que seja clara e segura como um precedente vinculante deve ser, necessita
que sua redação final, além de sintetizar as teses majoritárias, seja também
aprovada pela maioria absoluta dos integrantes do Supremo Tribunal Federal.
Faça-se presente, contudo, que
o referido debate ainda não findou. É que o Ministro Ricardo Lewandowski –
embora tenha acenado por acompanhar o voto do Ministro Zawascki, como assim o
fizeram os Ministros Roberto Barroso, Rosa Weber, Celso de Mello e o próprio
relator Ministro Gilmar Mendes –, como presidente em Exercício, proclamou o
resultado sem reconhecer peremptoriamente a possibilidade da produção de efeitos expansivos, nos termos do voto
do voto do Ministro Teori Zawascki, ponderando que não havia possibilidade se
produzir maioria absoluta naquela sessão e, ademais, o STF necessitaria aprimorar
a solução preconizada pelo Ministro Teori Zawascki, pois se fazia necessário produzir
uma “jurisprudência defensiva” para que o Supremo Tribunal Federal não restasse
inviabilizado pela grande quantidade de reclamações que surgiriam a partir do
reconhecimento de efeitos gerais as decisões proferidas em controle difuso.
Contudo, após o
referido julgamento da Rcl 4335/AC, o STF já deu claras indicações de que essa
nova realidade tende a consolidar-se. É que que, em seu voto, no RMS 29087, em
16/09/2014, o Ministro Celso de Mello afirmou que os fundamentos e salvaguardas
relacionadas à demarcação de terras indígenas fixados no julgamento da PET 3388
(Raposa Serra do Sol), que teve a questão constitucional enfrentada pela via
difusa, tem orientações direcionadas “a todos os processos sobre o mesmo tema”
e não apenas àquele caso.
Por Airton Portela, Professor, Juiz Federal, ex Analista, ex-Advogado da União e ex-Procurador Federal.
Não obstante a modulação dos efeitos
seja legalmente admissível somente no controle concentrado, a saber; na ação
direta de inconstitucionalidade, na ação declaratória de constitucionalidade,
na ação de inconstitucionalidade por omissão e na argüição de descumprimento de
preceito fundamental, respectivamente cuidados pelas leis n. 9.868/99, em seu
artigo 27, 12-A, §2º; e 9.922/99, em seu artigo 11).
Eros
Grau defendeu a mutação constitucional e acabou isolado, pois o próprio
relator, Min. Gilmar Mendes, conforme é possível extrair-se dos debates durante
a sessão de julgamento, anuiu a tese desenvolvida pelo Ministro Zawalski. Os
Ministros Sepúlveda Pertence e Marco Aurélio votaram pela preservação da
aplicação literal do art. 52, X, da CF, a Ministra Carmem Lúcia não participou
da sessão e os Ministros Toffolli e Luiz Fux estavam impedidos de votar pois
seus antecessores (Sepúlveda Pertence e Eros Grau) já haviam votado.